Uso político da medicina fez parte da história do País desde a Independência

Professor André Mota, da Faculdade de Medicina da USP, fala em entrevista sobre usos políticos da medicina e a trajetória da área na história nacional

Posto de Assistência à Infância durante o surto de gripe espanhola de 1918 - Foto: Acervo Fundação Oswaldo Cruz

Uso político da medicina fez parte da história do País desde a Independência

Professor André Mota, da Faculdade de Medicina da USP, fala em entrevista sobre usos políticos da medicina e a trajetória da área na história nacional

30/09/2022

Crisley Santana

Com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, iniciou-se uma série de mudanças. Entre elas, a maneira de lidar com questões relacionadas à saúde e à medicina. Para além da criação de universidades e pesquisas, a relação dos colonizadores com os povos nativos e escravizados influenciou no modo com que as áreas são exercidas e isso tem impacto nos dias atuais, conforme destaca o professor André Mota, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina (FM) da USP e coordenador do Museu Histórico da unidade, em entrevista ao projeto Ciclo22.

Além da trajetória da medicina e da saúde desde a Independência, o docente falou sobre o uso político delas no período atual e como essas ferramentas impactam a visão da população. O movimento antivacina e anticiência que se formou no País, e teve profundo impacto durante a pandemia, são exemplos desse uso, segundo o professor.

20220926_andre_mota_fm_usp.jpg

André Mota, professor da Faculdade de Medicina da USP - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Como as questões ligadas à saúde e medicina eram tratadas durante o processo de independência?

O processo de independência está dentro de uma mudança bastante importante que passa a ocorrer dentro do território, obviamente de maneira desigual, com maior foco nas áreas urbanizadas e litorâneas, durante o século 19. Esse processo traz uma novidade. Com a chegada da família real ao Brasil, em 1808, começa a se formar uma elite colonial brasileira que vai pegar o Rio de Janeiro, um pedaço de São Paulo e de Minas Gerais, formando um lugar de produção da cafeicultura. O Rio ganha um lugar central nessa discussão porque ocorre a chegada de duas faculdades de medicina, iniciando uma preocupação sanitária, com um pensamento higienista que ganha força. A partir da Independência, começa uma discussão no sentido de nação. Escravizados e indígenas não foram contabilizados nessa discussão, então o Brasil começou a criar suas desigualdades. Nesse sentido, a saúde passa a discutir seu significado para os brasileiros. Então, o que acontece no século 19 é esse desenho nacional do Brasil, com a entrada das teorias europeias. Obviamente, um Brasil classista escravocrata, violento. A medicina e a saúde pública também foram produzidas por essa elite, e isso chega até nós com todos os problemas. Quer dizer, essa ideia de que a saúde não chega para todos não é apenas um problema tecnológico, é um projeto de poder.

Havia uma noção positivista da medicina nessa época, com uma ideia de que ela representa o progresso. 

A medicina ganha essa natureza no século 19. A pergunta é: “qual progresso?” Se o progresso que estamos falando é sobre melhoria na qualidade de vida das pessoas, sem dúvida, ela trouxe. A gente não pode esquecer que as pessoas morriam de dor de dente no século 19, um braço quebrado, febre. Então a medicina e a saúde pública chegam para ir equacionando isso. Obviamente, com os interesses do sistema capitalista que estavam sendo colocados.

A faixa etária das pessoas aumentou muito em todos os países, obviamente que com foco nas elites. Por exemplo, aqui em São Paulo, na Cidade Tiradentes, as pessoas continuam morrendo numa média de idade de 54 anos, enquanto nos Jardins, que é um bairro nobre de Perdizes, a faixa é de 78, quase 80 anos. Então você vê a disparidade, mas levando em consideração aquelas pessoas que têm acesso, sem dúvida nenhuma a faixa etária deu um pulo. 

E isso traz repercussões. Como a vacinação, por exemplo. Esses projetos de vacinação em massa são muito importantes porque controlam as epidemias. Obviamente que quando acontecem episódios como fazer movimento político contra as vacinas, o que reflete na baixa imunização contra poliomielite, por exemplo, nos coloca novamente em problemáticas. O progresso da medicina tem sim um impacto e ele é usado no sistema em que a gente vive.

Como essa noção pode ter sido usada para controle social, naquele contexto?

O controle sempre existiu. A medicina surge como o poder no século 19 para isso. Conforme os tempos e os contextos vão mudando, também os movimentos sociais vão ocorrendo dentro dos contextos e vão transformando essas proposições em outras. Por exemplo, a discussão da vacinação. A vacinação surge como uma forma de colaboração dentro de territórios que não eram permitidos ser explorados porque as epidemias e endemias estavam acontecendo, como na África, nas Américas, em todo o Oriente. Então chega a vacinação um pouco nessa medida.

Depois da Primeira Guerra Mundial se transformou a ideia de vacinação como uma ideia de direito do cidadão. Algo que de fato nos possibilitou ter uma rede de proteção de determinadas doenças ou de determinadas endemias e epidemias. Então o jogo é jogado. O tempo todo os interesses estão sendo colocados. O Brasil está vivendo uma situação bastante clara a respeito disso. De repente, a vacinação contra a covid não era importante, de repente, usar máscara contra a covid era errado. Então a gente foi percebendo que esse discurso da medicina e da saúde entra para um jogo além da própria ciência, um jogo de interesses políticos e econômicos. Acabamos chegando aonde o Brasil chegou, talvez o país mais esdrúxulo em relação à covid e todos os desmandos que vimos, com quase 700 mil mortes.

Então é um pouco isso. A medicina vem por uma linha de progresso e ela tem, sim, o interesse de controle, sempre teve, porque a função dela é também para o sistema capitalista, mas dentro disso não quer dizer que os grupos populares, os movimentos sociais, as pessoas no geral  não estejam interagindo com essas perspectivas.

Campanha de vacinação no Brasil em 1970. Em 1995 o Brasil recebeu o certificado de país livre da poliomielite, doença cuja vacina teve cobertura reduzida nos últimos anos - Foto: Acervo Casa Oswaldo Cruz

Vindo para o tempo presente, o senhor lançou um livro com reflexões sobre a pandemia. Como esse período impactou a visão do País sobre medicina e saúde?

Muita coisa vai ter que ser publicada. Estava ocorrendo a pandemia e a gente estava escrevendo sobre ela, mas eu acho que conforme vamos ficando mais distanciados, vão aparecendo outras perspectivas e outras visões a respeito. O que eu penso é que a pandemia trouxe para o Brasil e para o mundo uma incerteza provocada pelo próprio sistema. Não existe uma epidemia do nada. Quando você olha as epidemias, elas ocorrem dentro de um contexto muito explicativo do ponto de vista do viver humano. 

A peste negra, por exemplo, está ligada com as Cruzadas, com as grandes navegações, com essa nova movimentação do homem no mundo. Depois você tem a gripe espanhola na Primeira Guerra Mundial, que inclusive ajuda a terminar uma guerra. E a covid chega dentro desse mundo com muitos refugiados, muitas pessoas desterradas da sua própria terra, um neoliberalismo muito violento do ponto de vista da hierarquização de corpos. Uma sugestão de que grande parte desses corpos não tem importância.

Quando você entra no Brasil, você pega toda essa problemática muito interna nossa, com essa concepção negacionista, anticiência, anti Sistema Único de Saúde. Ao mesmo tempo, essa visão de que as pessoas não importam. Isso trouxe um trauma muito grande para o Brasil.

ONG Rio de Paz durante manifestação em Copacabana em memória aos 100 mil brasileiros mortos pela covid-19 no Brasil - Foto: Rio de Paz via Fotos Públicas

Um trauma para o Brasil, porque é muita gente morta. A gente não pode esquecer disso. Isso não é uma coisa que se resolve. Essas quase 700 mil mortes estarão conosco ainda por muito tempo, nas entrelinhas dos discursos, dos nossos atos, das nossas ações, porque se deu de uma maneira muito violenta. De uma forma em que não havia política. Tudo estava confuso. Havia um movimento antivacina muito forte.

Tinha aquele Brasil do século 19, com aquela idealização. Mas os problemas daquele Brasil não são os mesmos que a gente encontra hoje, com grande parte da população abandonada, sem saúde, como se elas não tivessem esse direito. Ao mesmo tempo, essa nova tecnologia neoliberal. Isso tudo afundou o País. Nós estamos nesses 200 anos de independência e não há nada para se comemorar. 

Por exemplo, dentro do meu livro tem um capítulo muito interessante sobre as pessoas vivendo em situação de rua. Para nós que vivemos na cidade de São Paulo, talvez por ser a maior cidade do País seja mais evidente, mas aqui há 60 mil pessoas vivendo em situação de rua. Não havia água durante a pandemia nem para beber, porque estava tudo fechado. Crianças passando sede, velhos, mulheres grávidas. A pandemia, com toda essa confusão, essa falta de acolhimento…  A pergunta é: quantos será que morreram? Por que a gente não tem essa contabilidade? Porque o sistema diz que essas pessoas não têm importância.

Isso virou nossa relação com o que é ser brasileiro, nossa relação com a nossa nacionalidade. Veja que o Brasil atualmente vem trabalhando com uma ideia absolutamente, do meu ponto de vista, incrível. Estamos com o coração do Dom Pedro I, numa relação transcendental, quando as pessoas têm crianças passando fome no meio da rua.

A pandemia tirou um certo verniz, que nós achávamos, talvez erradamente como sociedade, de que o Brasil tinha dado um passo. Acho que talvez estivéssemos só a caminho do passo, porque foi tão rápido o nosso retrocesso! A pandemia desvelou que o Brasil é um país que tem democracia como governo, mas não como regime. Nós não vivemos democraticamente. A saúde é um direito democrático. Se não vivemos democraticamente, por mais que você tenha um sistema em funcionamento, ele sempre vai ter limites.

O tempo todo é o desenho do Brasil que queremos. Um Brasil diferente para termos uma saúde diferente. Ou não teremos, porque não é apenas o sistema que carrega esse problema. O que carrega problemas é a nossa ideia de nação. Aqui naturalizamos a desigualdade, o racismo, naturalizamos a homofobia, as questões de gênero como questões de violência contra os grupos. Bem, como é que nós vamos falar de saúde, né?

O sistema que está aí é um sistema que tenta nos jogar em dois níveis: de adoecimento, com muita angústia sobre o futuro, e muita depressão, como se não houvesse passado. O que a gente tem que fazer é pensar que realmente isso está entre nós. A gente precisa encontrar uma rota, um caminho que seja acolhedor, generoso. Um caminho em que todo mundo caiba. Um caminho de democracia. Porque só votar não é democracia, mas viver com pensamento livre e com expressão livre. Isso só vai acontecer fora do fascismo que nós estamos vivendo, que fala em liberdade, mas não é liberdade. É, ao contrário, a total extinção da nossa capacidade de fruição no mundo. 

Temos que prestar atenção na saúde e não deixar que ela aconteça para a destruição de vidas, mas sim para a construção delas.

Cadastre-se e receba as notícias por e-mail clicando aqui. E siga as redes sociais do projeto:Twitter | Instagram | Youtube