Praça da Piedade, no Centro de Salvador, em gravura do século 19: lugar foi o palco da Revolta dos Malês - Johann Moritz Rugendas, 1835/Wikipedia

Estudo analisa recurso constitucional que suspendia direitos no Brasil Império

Pesquisa produzida na USP analisou parágrafo da Constituição de 1824 que suspendia liberdades individuais durante movimentos políticos e sociais no país recém-independente

08/10/2021

Crisley Santana

“Independência ou morte” foi a frase atribuída a D. Pedro I na ocasião em que decidiu separar o Brasil da metrópole, Portugal, em 7 de setembro de 1822. Daquele dia em diante, a antiga colônia tornava-se império com um modelo de monarquia constitucional que se estabeleceu em 1824 com a outorga de uma Constituição. 

Entre outras regulações, a nova Carta trazia no inciso 35 do artigo 179 a possibilidade de suspender os direitos individuais dos cidadãos, previstos naquele mesmo artigo, em casos específicos, como rebelião ou invasão de inimigos. 

O percurso de uso desse recurso foi analisado na tese intitulada Suspensão de garantias na monarquia constitucional representativa brasileira: debates parlamentares, práticas políticas e contestação à ordem (1824-1842), produzida no Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em São Paulo, por Vivian Chieregati Costa. A pesquisa recebeu menção honrosa no Prêmio Capes de Tese de 2021.

O que foi o inciso

O inciso 35 do artigo 179 da Carta de 1824 tinha por definição estipular os casos em que as liberdades individuais dos cidadãos brasileiros poderiam ser suspensas. 

Se entendia por liberdades individuais: igualdade perante a lei; liberdade de ir e vir, de religião e de imprensa; a inviolabilidade do lar; o segredo das cartas; a proibição de prisão sem culpa formada; a obrigatoriedade de que sentenças fossem extraídas por autoridades competentes e em virtude das leis anteriores; o direito à fiança; a proibição de comissões especiais; a abolição de comissões especiais; a abolição das penas cruéis e infamantes, e os direitos de propriedade e petição. 

O inciso 35 afirmava, porém, que se poderiam desprezar as “formalidades garantidoras” de tais liberdades em casos de rebelião e invasão de inimigos, a partir de ato especial do Poder Legislativo. Apenas em casos excepcionais, em que não pudesse o Legislativo atuar, poderia o Poder Executivo, concentrado nas figuras de ministros das províncias, executar a medida.

Por não haver explicitação do que seriam tais “formalidades garantidoras”, o recurso deu brechas para todo tipo de disputa em torno do seu uso. E quase sempre, “calorosos debates”, como é dito na tese.

Entre 1824 e 1842, ele foi usado em ao menos dez ocasiões consideradas atentatórias à segurança nacional pelos poderes Executivo e Legislativo. Todas elas, de levantes político-culturais, como o Levante dos Malês (Bahia, 1835); Cabanagem (Pará, 1835-1840); Sabinada (Bahia, 1837-1838), entre outras, tanto de maior quanto de menor proporção. 

Em alguns casos, a medida não se concretizou, apesar da tentativa de aplicação pelos poderes. Em outros, a medida foi prorrogada por maior tempo, como em eventos como a Cabanagem e a Revolução Farroupilha (Rio Grande do Sul, 1835-1845), no qual as prorrogações, que chegaram a cinco vezes, fizeram com que os rio-grandenses tivessem suspensas suas liberdades individuais por seis anos, entre 1836 e 1842. 

Pintura da época do Brasil imperial - Wikimedia Commons

Os debates em torno do uso

Entre 1824 e 1825, o recurso foi usado três vezes. Em resposta do império à Confederação do Equador (Pernambuco, 1824); ao Levante dos Periquitos (Bahia, 1824) e nas províncias Cisplatina e Rio Grande do Sul, região em que ocorria a Guerra Cisplatina (1825-1828).  Nas ocasiões, a partir do recurso, foram criadas comissões militares que desobrigaram as autoridades a seguir as formalidades dos processos-crime no julgamento dos envolvidos em tais eventos.

As comissões fizeram com que os deputados do país recém-independente cobrassem prestação de contas do governo do império, a fim de averiguar a legitimidade constitucional de tais formações nos casos, como mostra a tese.

“Essa pressão dos parlamentares se fez sentir, e de fato o Poder Executivo se deu conta que havia um Legislativo muito atento a tudo que estava sendo feito, e muito desinteressado em que houvesse comissões militares”, disse a pesquisadora.

Com isso, a partir dos primeiros usos do recurso, já foi possível evidenciar que seria preciso demarcar limites mais conclusivos sobre suas formas de aplicação, o que gerava intensas discussões entre parlamentares. “A questão demandava muita atenção de parte deles nesses primeiros anos de funcionamento do Legislativo. Eles tinham muitas dúvidas sobre como o parágrafo 35 funcionava”, afirmou Vivian.

Vivian Chieregati Costa - Foto: Arquivo pessoal

Mais tarde, ao fim de 1828, e após aprovada a chamada “Lei de Responsabilidade dos Ministros e Conselheiros do Estado”, ficou estabelecido que as garantias suspensas não poderiam incluir as formalidades do processo. Na prática, o estabelecido impedia a formação de comissões militares nos julgamentos de sublevações políticas e sociais. 

Outras concordâncias incluíam a obrigatoriedade de prestação de contas do governo do império ao poder Legislativo nos casos em que a medida fosse adotada pelo poder Executivo, e a responsabilização de autoridades por abuso de poder durante o uso da medida. Isso, porém, não significou uma interpretação definitiva sobre ela e seus efeitos.

Apesar dos acertos, o governo mostrou-se disposto a passar por cima do entendimento do Legislativo, que, com decretos passados pelo Executivo em 27 de fevereiro de 1829, suspendeu as garantias e criou uma comissão militar para o julgamento dos envolvidos no levante que ficou conhecido por “República dos Afogados”, ocorrida em Pernambuco naquele ano. 

O caso somou-se à tensão que já havia entre os poderes naquele período de fim do Primeiro Reinado (1822-1831), com a tentativa da Câmara de responsabilizar os ministros Lucio Soares Teixeira de Gouveia, da Justiça, e Joaquim de Oliveira Álvares, da Guerra, por uso indevido do recurso, o que não se concretizou.

Entre 1831 e 1834, a medida não foi citada. Só em 1835, com o surgimento de uma convulsão social e diversos levantes, o inciso 35 do parágrafo 179 voltou a ter seus limites e possibilidades discutidos.

A revisão e o abandono

Após a morte de D. Pedro I, em 1834, e superadas as expectativas de um possível retorno do imperador, somadas aos levantes promovidos por escravizados, como a chamada “Revolta dos Malês” na Bahia de 1835, que tiravam o sono da classe proprietária, os legisladores decidiram por retomar com mais fôlego o recurso de suspensão das garantias individuais.

Com o surgimento de outros levantes, como, por exemplo, a Cabanagem e a Revolução Farroupilha, voltou-se também a discutir os limites da medida. Mesmo a criação de comissões paralelas ao Código de Processo Penal, como as comissões militares, antes rejeitadas por deputados, voltou ao debate. Embora a criação de tais comissões não tenha se concretizado, o tema passou a ser recorrente nos anos que se seguiram. 

Contudo, o uso do recurso passou a se mostrar pouco efetivo na contenção de revoltas. A baixa precisão foi motivo de ataque dos parlamentares opositores da medida, alguns, inclusive, que antes se mostraram defensores do recurso. A pesquisadora Vivian explicou que essa controvérsia demonstra as disputas travadas nos diferentes contextos políticos em que o dispositivo era usado.

Com o chamado “Golpe da Maioridade” (1840), no qual o controle do império passou para as mãos de D. Pedro II, o poder Executivo pôde voltar a executar a prerrogativa, que havia sido retirada das suas atribuições. O governo foi, inclusive, responsável por executar as últimas possibilidades de uso do inciso 35, em 1842, para conter a Revolta Liberal de São Paulo e Minas Gerais.  

Com o decorrer do tempo, e devido à falta de conclusão sobre como exatamente deveria ser usado o recurso, e sem mais “rebeldes” à vista, o recurso mostrou-se pouco necessário para o governo e a classe política. Deixou, assim, de ser utilizado pelo resto da história do governo imperial.

Todo o percurso seguido pelo recurso desde a implementação da Carta Constitucional de 1824, até seu abandono, em 1842, demonstra que o debate em torno do que seria, de fato, “suspensão de garantias” não se estabilizou. Também traz a discussão, segundo a tese, em torno da capacidade constitucional de regular a exceção, como no caso da problemática enfrentada nos primeiros anos do Brasil independente.

A pesquisadora e a pesquisa

Vivian Chieragati Costa é pesquisadora e arquivista com experiência nas áreas de História, História do Direito, História do Brasil, História Política e Intelectual. 

Sua tese de doutorado foi orientada pela professora Mônica Duarte Dantas, da FFLCH, e pelo professor Samuel Barbosa, da Faculdade de Direito (FD), ambas da USP, em São Paulo. 

A pesquisa contou com bolsa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. As análises foram feitas com base em relatórios nacionais e ministeriais de províncias, além de arquivos de imprensa da época, encontrados em maior parte em acervos digitais. 

“Acabei fazendo tudo com arquivo digital. Foi uma pesquisa muito frutífera, e eu diria que uma porcentagem alta dela se deu aqui na minha casa, pelo computador. É impressionante como isso mudou e como você consegue fazer uma pesquisa com bastante fonte quase sem sair de casa”, relatou a pesquisadora.

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