Pessoas caminham no centro de São Paulo - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Pesquisador explica como interpretação sobre as multidões pode afetar movimentos políticos

Em entrevista, pesquisador Bruno Mastrantonio, da Faculdade de Medicina da USP, falou sobre o olhar médico acerca do comportamento de massas, como o Carnaval e as greves

10/03/2023

Crisley Santana

Em 1895, o polímata francês Gustave Le Bon publicou o ensaio Psicologia das Multidões, no qual reflete sobre o comportamento inconsciente das massas. O assunto voltou ao debate público em 2020, quando a restrição do fluxo de pessoas foi necessário para frear a contaminação pela Covid-19. 

Como as multidões mudaram e permanecem mudando o mundo contemporâneo? Em entrevista ao projeto Ciclo22 da USP, o pesquisador Bruno Mastrantonio, da Faculdade de Medicina (FM) da USP, em São Paulo, falou sobre as mudanças influenciadas pelo estudo científico das multidões. Práticas sociais que levam à concentração populacional, como o Carnaval e os protestos políticos, por exemplo, permanecem sendo fontes de calorosos debates. Leia abaixo.

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Bruno Mastrantonio, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP - Foto: Arquivo Pessoal

O que é a “Era das Multidões” e como a área da saúde é afetada por esse conceito?

Acho importante a gente retomar um momento da história em que as multidões passam a se tornar personagens históricos. Isso aconteceu no século 19 em virtude de dois eventos na história da Europa que transformaram a sociedade. Primeiro foi a Revolução Industrial, que tirou toda aquela massa de camponeses do campo para ir trabalhar nas cidades, nas indústrias, adensando as cidades populacionalmente. O segundo grande evento foi a Revolução Francesa, que colocou às camadas populares a perspectiva de que elas poderiam participar da política e fazer transformações políticas de acordo com as suas demandas. Esses dois eventos colocaram a multidão na cidade como um grande problema a ser debatido, tanto que os médicos que estudaram as multidões colocam justamente isso: “Vamos estudar a ‘Era das Multidões’ porque agora tudo que será feito politicamente será sobre a vontade das multidões. A força de vontade das multidões pode transformar o curso da história”. Esses médicos estavam tentando entender a multidão a partir desses eventos no contexto da cidade. Logo de cara surge o problema da multidão como uma questão sanitária, porque aquelas populações de trabalhadores de fábricas viviam em péssimas condições de moradia e de trabalho, então houve uma propagação muito forte de doenças durante todo o século 19. 

Isso foi se estendendo conforme as pessoas foram vivendo aglomeradas em cortiços, transmitindo diversas doenças. Então houve uma investida médica no sentido de tentar controlar ou gerir essas multidões. Isso seria a chamada “Era das Multidões”, esse movimento em que a multidão aparece como um personagem histórico, um objeto a ser combatido ou mais bem gerido. A grande estratégia da saúde pública é pegar as multidões, que eram interpretadas pelos médicos como “feras anônimas”, “monstros incontroláveis”, e transformá-la numa população. Então, foi preciso saber quantos nascem, quantos morrem, do que adoecem e por que estão morrendo. Essa é a grande estratégia da saúde pública nessa “Era das Multidões”: gerir. Transformar “esse monstro indomável” numa coisa domável. Isso se refletiu ao longo do século 20. Com a pandemia, a questão voltou porque a saúde está sempre nesse jogo de força com as multidões. 

O grande problema da pandemia de covid-19 estava relacionado à cidade e ao ordenamento dela, à circulação de pessoas, a diminuir o fluxo nos transportes públicos, por exemplo. Vimos várias investidas no sentido de tentar controlar a circulação das pessoas para evitar aglomerações. Mas as tentativas foram falhas ou inexistentes. Uma das soluções possíveis seria aumentar a quantidade de linhas disponíveis de trens e ônibus, e isso não foi feito. Na verdade, foi feita uma redução das linhas, o que gerou mais aglomeração. 

Se no passado as multidões representavam um desafio, elas ainda desafiam os saberes médicos e administrativos da cidade. Esse é o grande dilema da saúde: tentar converter esses movimentos de multidões em coisas mais regradas para evitarmos causas generalizadas.

Qual a relação do advento de pandemias com esse pensamento de massa?

Na virada do século 19 para o 20, na cidade de São Paulo por exemplo, nos primeiros anos da República, tivemos uma proliferação de epidemias, como febre amarela, cólera e tuberculose no meio dos trabalhadores. A relação era sempre dada dessa forma: quanto mais pessoas estiverem aglomeradas no espaço, basta ter algum vetor da doença e o contágio acontece de forma muito acelerada.

Então, alguns médicos tinham a ideia de que você precisava reestruturar a cidade para evitar que as aglomerações potencializassem epidemias. O código sanitário de 1894 é um desses pontos. Os médicos foram para os cortiços de Santa Ifigênia [em São Paulo] e elaboraram relatórios para reformular as moradias coletivas, porque havia uma noção de que as aglomerações potencializam epidemias. 

A meu ver, são multidões que nos chocam quando falamos sobre doenças por causa da quantidade de pessoas mortas ou submetidas ao contágio na pandemia de covid-19. Houve pesquisas feitas a respeito disso, algumas delas relacionando com o transporte público, pois observou-se que os locais de maior uso do transporte público acontecem em territórios onde houve maior concentração de covid. 

As estratégias tomadas para reduzir isso é que são falhas, porque imagina no metrô, nas filas de ônibus… Uma das estratégias foi pintar o chão para as pessoas ficarem a um ou dois metros de distância umas das outras. Mas isso, na prática, é impossível porque há muita gente. O adensamento populacional reflete que nós não estamos preparados para lidar com esse problema das multidões, das aglomerações, do adensamento populacional que potencializa as doenças.

Como podemos pensar em uma solução para esses problemas? Cidades como São Paulo, por exemplo, têm uma aglomeração populacional muito grande.

Esse é o grande dilema. Alguns autores colocam a multidão como uma “esfinge” da saúde pública. Um “monstro” que tentamos decifrar; transformar em população, em alguns conceitos que traduzam aquilo que desconhecemos para ter controle. Como fazer isso? 

As experiências históricas mostram que sempre foi um jogo muito difícil de se conseguir. Um exemplo é a Cracolândia, uma região de intenso fluxo de pessoas por conta das drogas. Os governos estão o tempo todo dizendo: “Vamos limpar a Cracolândia. Vamos sumir com a Cracolândia”. Isso não vai acontecer. Primeiro porque a repressão policial não é a saída para esse problema. As pessoas que estão ali criam suas estratégias de sobrevivência, então a Cracolândia se move para outros lugares, cria novos fluxos, faz novas áreas ou intensifica fluxos já existentes. Acho que precisamos ter um outro entendimento da cidade e dos espaços para que a gente consiga diluir essas populações, respeitando as populações que estão em situação de rua. Garantir políticas de moradia, garantir políticas de acesso à saúde, garantir criação de novas linhas, que diluam essa população, que façam com que elas consigam ter várias opções de ônibus e de Metrô.

Desde a explosão demográfica que São Paulo vivenciou no começo do século 20, a gente vê que a coisa sempre foi muito desordenada. Esses espaços nunca deram conta de absorver a população e a consequência disso são espaços sempre superlotados. Casas superlotadas; os cortiços, as regiões periféricas, hospitais em casos de pandemia superlotados; transporte público superlotado. Toda uma questão de infraestrutura que, a meu ver, precisa ser transformada para que a gente modifique a forma que a gente lida com as multidões. 

Às vezes parece que já é um pouco naturalizado para nós: “São Paulo é uma cidade de multidões”. É naturalizado que eu vou chegar ao Metrô e que eu vou me espremer naquilo. Então a gente, talvez, tenha que mudar. Desnaturalizar.

Esse conceito de aglomerações para tentar construir uma outra cidade, que consiga se diluir, que consiga absorver os fluxos populacionais, talvez seja uma mudança até utópica de falar, mas não vejo de outra forma. A repressão às aglomerações não me parece ser a principal saída. 

Mesmo sendo recente, a pandemia de covid-19 não fez com que tradições que geram aglomerações, como o Carnaval, fossem encerradas, por exemplo. Há casos na história que impactaram a saúde coletiva de maneira a alterar práticas sociais?

As pessoas vão criando as suas práticas. Não só o Carnaval, mas também manifestações políticas. Essas práticas fazem parte da multidão. Não só as festividades, mas também o protesto. Aliás, essa foi uma das interpretações negativas da multidão que alguns médicos fizeram para tentar controlar os movimentos políticos.

Um exemplo de evento histórico pautado pela multidão é a greve paulistana de 1917. Foi um marco muito importante para mostrar essa multidão nas ruas como participante política, como um agente político ativo para transformar as condições relacionadas a salários e melhoria da qualidade de vida. Então, houve uma investida médica no sentido de criminalizar os movimentos políticos pela ótica da loucura. 

Da mesma forma que o contágio em pessoas aglomeradas por doenças infectocontagiosas era tratado, fenômenos políticos eram vistos como epidemias psíquicas. Como se um indivíduo “louco”, por exemplo, fosse capaz de transmitir a sua loucura para outros. Isso tem até certa relação com as festividades, como o Carnaval. 

Esses movimentos, Carnaval, procissões religiosas, onde as pessoas andam em marcha acreditando garantir milagres como cura, e as manifestações políticas, fizeram com que o pensamento médico — que antes estava muito centrado na individualidade — passasse a pensar no coletivo, nas multidões.

Esses movimentos sacudiram o pensamento médico para dizer: “Não podemos só olhar o corpo, o indivíduo. Temos também que olhar a coletividade, as multidões, e criar interpretações sobre elas”. Até hoje vemos algumas interpretações negativas que dizem que as multidões são insanas, podem cometer crimes. O Carnaval, para os mais conservadores, é o período em que acontecem comportamentos promíscuos. Sempre há esse viés negativo. 

Mas a multidão também pode ter uma interpretação positiva de transformação do meio em que vivemos, como as greves fizeram. Como os coletivos que estão trabalhando nas ruas, muitos deles ajudando em questões relacionadas à Cracolândia, oferecendo serviços assistenciais de saúde. Temos que ter em mente que a multidão, ou as multidões, são campos de disputa.

Desde que os trabalhadores filiados a ideias socialistas ou anarquistas começaram a fazer suas manifestações, parte conservadora dos médicos dizia: “Eles são todos loucos, estão transmitindo sua loucura para outros indivíduos”. Quando fazemos uma interpretação positiva, tendemos a colocar isso como uma ação transformadora. Mas também não podemos perder de vista que existem multidões fascistas. O que aconteceu muito recentemente em nosso país, em janeiro, foi uma manifestação fascista de violência destrutiva

Temos que pensar de qual ponto estamos olhando a multidão. Quem está compondo? Quem está incitando seus líderes? Quais os objetivos dela e o que ela pretende transformar? A existência da multidão como um problema foi transformando algumas interpretações médicas e, no fim, a população mais pobre, mais preta e mais marginalizada é que é colocada como um risco, seja de transmissão de doenças, seja com relação à criminalização.