Oano é 2022. A menina Annita chega da escola chateada porque teve seu desenho ridicularizado por um colega de sala. Ao entrar em seu quarto, às 19:22, um lapso temporal permite que a criança encontre a figura que inspirou seu nome: a pintora modernista Anita Malfatti, diretamente de 1922, entra no cômodo junto com a garota. Separadas por 100 anos, as personagens conversam sobre arte, inseguranças e opressões de gênero.
Lançado em 17 de julho pela Cia. Ruído Rosa, o livro Aconteceu às 19:22 apresenta a Semana de Arte Moderna de 1922 a partir do diálogo entre a artista e a criança Annita. Trata-se de uma dramaturgia infantil feminista, de autoria de Anna Carolina Longano, bacharel em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e doutoranda do Programa de Mudança Social e Participação Política da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, no qual também realizou seu mestrado.
Na história, Anita Malfatti está ansiosa pelo início da Semana de Arte Moderna e pela recepção do público, sobretudo por causa de críticas às suas obras que havia recebido. “A Annita criança e a Anita Malfatti começam a conversar sobre medos, inseguranças artísticas, críticas recebidas e sobre a dificuldade que as mulheres têm na arte”, conta Anna. Opressões artísticas e de gênero são discutidas pelas personagens, que avaliam o que mudou e o que permanece igual no período que as separa.
“Chamamos de dramaturgia infantil feminista porque é um posicionamento político-social, mas também artístico-estético”, diz a autora. “É uma dramaturgia feita para crianças, mas traz não só temáticas, pautas e lutas feministas como ferramenta para a produção do texto, como também questões que surgem no feminismo como um campo de estudo, do qual eu parto para a criação desse trabalho.”
Anna também é cocriadora da produtora artística Cia. Ruído Rosa, responsável pela produção independente do livro, que inclui o editor Vítor Freire — também bacharel em Artes Cênicas pela ECA —, o desenhista Lauro Freire e a designer e diagramadora Lygia Pecora. O livro foi desenvolvido a partir de um edital público do governo federal, de setembro de 2018 — o Prêmio de Incentivo à Publicação Literária, sob o tema 100 Anos da Semana de Arte Moderna de 1922, do qual foi vencedor.
“Eu já vinha seguindo em uma pesquisa prático-teórica sobre representações corporais das mulheres na arte, em especial na dramaturgia. Quando vi esse edital, pensei em como, partindo da ideia de trazer diferentes representações das mulheres na arte, eu poderia escrever sobre a Semana de 22”, explica Anna. “Fui pesquisar mais sobre essa semana e descobri a grande importância da Anita Malfatti em eventos que acabaram resultando naquela semana de arte.”
No final de 2020, através do Programa de Ação Cultural (Proac) Expresso Lei Aldir Blanc (LAB), do governo do Estado de São Paulo, Anna recebeu o Prêmio por Histórico de Realização em Literatura, pelo texto do livro e também por outras dramaturgias, como Dia de Mudança, para crianças, e Sussurros: O Que Aconteceu Antes do Grito, que retrata o protagonismo da imperatriz Leopoldina nos bastidores da Independência do Brasil. Esta última, voltada para o público adulto, será lançada em setembro. Além da publicação de Aconteceu às 19:22, outras ações também foram viabilizadas pelo prêmio, como o próprio evento de lançamento do livro e a distribuição gratuita de metade da tiragem.
Opressão de gênero e dominação
Anita Malfatti (1889-1964) foi uma artista plástica brasileira e um dos mais importantes nomes da Semana de Arte Moderna de 1922. “Em 1917, Anita fez uma exposição com o que estava produzindo a partir de estudos feitos na Europa. Ela começa a trazer uma forma de pintar temas e representações artísticas que não eram muito comuns aqui no Brasil”, conta Anna. A nova forma de arte proposta foi alvo de duras críticas do escritor Monteiro Lobato. “A crítica não foi apenas para Anita, foi para artistas e produções daquela época que estavam seguindo aquela estética, porém acabou vindo de uma exposição dela. Mas, ainda assim, ela não parou de pintar, estudar e se articular artisticamente”, afirma a autora.
Anna destaca que a Semana de 22 foi uma resposta de artistas de diferentes áreas, ao mostrarem que as novas ideias para a produção artística não se tratava de uma “loucura”. “Estavam buscando uma forma brasileira de produzir arte, no sentido de entender qual era a nossa identidade, nossos valores, e as temáticas que faziam sentido para as pessoas aqui no Brasil — ainda que a grande influência delas fosse uma arte europeia ou produzida nos Estados Unidos”, diz Anna.
Daí vem a relevância do contato das crianças com essas temáticas, através de obras como o livro Aconteceu às 19:22, acredita Ana. “O tema faz parte da nossa história, do nosso País, da nossa arte. É importante as crianças saberem que a história é feita de diversas histórias e de diferentes interpretações. É um conhecimento de que a busca e o questionamento da nossa identidade, de quem somos, como artistas e até como nação, é frequente, e não faz parte de apenas um momento ou de uma ideologia”, reflete a autora. Além disso, é a partir da Semana de 22 que Anna aborda, no livro, questões de opressão de gênero focadas na arte. “Esse é um assunto muito importante para não continuarmos reproduzindo valores e uma cultura patriarcal violenta de opressão e de dominação”, ressalta.
Arte e transformação social
Anna Longano e Vítor Freire fundaram a Cia. Ruído Rosa em 2006, quando ainda eram alunos de graduação em Artes Cênicas da ECA. “A Ruído Rosa nasceu como uma companhia de teatro, mas foi virando uma produtora artística a partir do momento em que a linguagem teatral era apenas uma linguagem entre tantas outras que a gente queria abordar, falar, trabalhar, pensar e produzir”, descreve Anna.
A partir de 2008, começaram a trabalhar com foco no público infantil, e hoje realizam contação de histórias, podcasts e publicação de livros, além de ações pedagógicas, cursos, oficinas e espetáculos também para adultos.
“Tanto eu quanto Vítor somos pessoas muito transdisciplinares”, afirma Anna, em relação aos campos de estudo pelos quais ambos transitam. “Nossa trajetória acadêmica dialoga muito com a de produtora artística. Somos pessoas inquietas e não conseguimos, não queremos nos comunicar através de uma única linguagem artística.” Ao longo dos anos, a produtora vem realizando trabalhos através de contratações de empresas privadas e também via esfera pública, com premiações por editais. “Nosso objetivo é continuar nessa diversidade de produções, mas sempre com o compromisso de oferecer uma linguagem gentil”, comenta Anna.
Para a autora, a arte não é só uma possibilidade de promover mudança social, mas também uma forma de participação política. Nesse sentido, acrescenta Anna, a produtora Cia. Ruído Rosa também é um meio para a mudança social, por permitir que ações promotoras de reflexão, comunicação e produção de conhecimento artísticos cheguem a pessoas que geralmente não têm fácil acesso à arte.
“Uma coisa importante é como a arte e a pesquisa acadêmica são ligadas. Uma alimenta a outra”, avalia Anna diante de sua experiência. “Eu fiz os textos dos livros enquanto estava no mestrado, e a feitura deles foi desenhando a minha pesquisa de doutorado. Então, nesse caso, a pesquisa acadêmica com o fazer artístico e o fazer acadêmico com a pesquisa artística são questões totalmente relacionadas”, finaliza a autora.
O livro Aconteceu às 19:22, de Anna Carolina Longano, pode ser adquirido através do site da Cia. Ruído Rosa.
Texto: Gabriela Caputo, Jornal da USP