Por Crisley Santana
Entre a Praça da Bandeira e a avenida São João, no centro da cidade de São Paulo, está o Vale do Anhangabaú. A origem da região remonta ao início do século 20, marcado pela expansão urbana do município, pelo centenário da independência e pela passagem de um estrangeiro que tornou possível a criação do vale. Na tese de doutorado Joseph-Antoine Bouvard no Brasil. Os melhoramentos de São Paulo e a criação da Companhia City: ações interligadas, essa história é contada.
O estudo foi realizado no programa de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP por Roseli Maria Martins D’elboux e recebeu em 2016 menção honrosa no Prêmio Capes de Tese, promovido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações.
Bouvard (1840-1920) foi um arquiteto francês que participou de importantes projetos arquitetônicos em seu país, como a colaboração na construção da Torre Eiffel. Também atuou em projetos na América do Sul, em cidades como Buenos Aires e São Paulo, e sua vinda à terra paulista é o principal objeto de exploração da tese de Roseli.
A ideia inicial da pesquisadora era entender a paisagem urbanística do Vale Anhangabaú, mas a curiosidade sobre quem era o responsável pelo primeiro projeto de parque a levou ao nome do Bouvard. “Havia pouca coisa sobre ele e os historiadores repetiam muito sobre a atuação da Companhia City”, conta Roseli ao se referir sobre o negócio montado pelo arquiteto em São Paulo, em 1911.
A partir da descoberta, passou a explorar as facetas de Bouvard enquanto agente público e privado, o urbanismo proposto por ele à cidade paulistana e os interesses por trás de tais projetos.
Como chegou e o que fez Bouvard em São Paulo
A participação de Bouvard na construção da arquitetura em São Paulo foi quase uma coincidência. Ele não foi convocado de maneira exclusiva, ao contrário do que afirmavam alguns estudos encontrados pela pesquisadora. O arquiteto havia terminado de realizar projetos na Argentina, especialmente voltados ao bicentenário do país, em 1910. De passagem ao Brasil para possíveis parcerias na cidade de Curitiba, no Paraná, foi convidado a conhecer empreendimentos da prefeitura paulistana. Se instalou em São Paulo em abril de 1911.
A atuação no país argentino deixou o nome do arquiteto visado. “Tem uma triangulação São Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires muito maluca, porque um tá olhando a reforma do outro, e querendo se modernizar, ser a Paris da América do Sul”, explicou a pesquisadora.
Outro motivo para o convite estava no interesse de Victor da Silva Freire, diretor de obras da Prefeitura, em conseguir transformar a região do atual Anhangabaú em parque. Havia um embate travado entre ele e o dono de muitos lotes do terreno, Eduardo da Silva Prates, conhecido como Conde de Prates, que desejava criar prédios no local.
Bouvard atuou, principalmente, na mediação de tal conflito. Convenceu o diretor de obras a criar alguns prédios na região, como desejava Prates, ao mesmo passo em que demonstrou ao conde os benefícios de, ao lado das construções, ter uma região cercada de verde.
“Ele consegue convencer os dois principais agentes [do projeto]. Em Paris fazia isso o tempo todo nas grandes obras que envolviam interesse público, como a Torre Eiffel”, conta Roseli.
O Vale do Anhangabaú foi finalizado pela prefeitura entre os anos de 1917 e 1918, com atrasos devido às dificuldades trazidas pela Primeira Guerra Mundial. Bouvard, há muito, já havia partido. Sua estadia durou apenas dois meses, de abril a junho de 1911, mas foi suficiente para a concretização de seu maior interesse, segundo D’elboux: a organização da City of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited. A empresa viria depois a ser responsável por projetos de urbanização de bairros paulistanos como o Butantã e o Alto de Pinheiros.
Além do Vale do Anhangabaú, Bouvard desenhou planos para a construção do antigo Parque da Floresta, onde se encontra o atual Clube Tietê, além do projeto da então Várzea do Carmo, atual Parque D. Pedro II. Este último, inaugurado durante o centenário da independência do Brasil, em 1922.
Apesar de importantes, os projetos de Bouvard foram, logo após a realização, alterados pela entrada de automóveis na cidade, dando espaço a uma “Era Rodoviária”, que passa a predominar na paisagem
Contribuições de Bouvard ao centenário da independência
O arquiteto incentivou a organização de São Paulo para a comemoração do centenário da independência do país, a exemplo dos empreendimentos realizados em Buenos Aires. Os melhoramentos da cidade seriam, então, ligados à exposição da data.
O projeto do atual Parque D. Pedro II, por exemplo, foi também pensado por Bouvard para essa ocasião, embora, como mostra a tese, já fosse discutido no fim do século a ligação da região ao Monumento do Ipiranga em vista das festividades do marco que se aproximava.
Um discurso realizado por Bouvard na Câmara Municipal demonstra o incentivo do francês a essa mobilização. Durante a fala, o arquiteto ressalta as qualidades topográficas da cidade, bem como o ar de modernização, com expansão de comércios e indústrias. Mas atenta para o plano geral de melhoramento, a fim de concretizá-lo até a data de comemoração.
Monumento à Independência, também chamado Monumento do Ipiranga, foi inaugurado durante o centenário, em 1922 - Foto: Governo de São Paulo
“Eu diria que essa é a grande contribuição dele, dar uma espécie de chacoalhão em todo mundo quando diz: ‘São Paulo precisa se organizar para receber o centenário’”, destaca a pesquisadora.
Bouvard, que faleceu em 1920, não chegou a participar dos eventos em comemoração à data. O evento nacional da independência foi realizado no Rio de Janeiro, com uma exposição internacional. Em São Paulo foi inaugurado o atual Parque D. Pedro II e o Monumento à Independência, localizado próximo ao Rio Ipiranga.
Companhia City: o maior interesse de Bouvard
Os ingleses foram responsáveis por investir, em grande quantidade, na São Paulo do século 20. Exemplo disso foi a parceria que fizeram com Bouvard, em setembro de 1911, para criação da Companhia City, empresa de arquitetura que começou a funcionar em 1912, tendo ele como vice-presidente.
Esse era o principal interesse do arquiteto em São Paulo, como demonstra D’elboux em sua tese. Os projetos públicos de urbanização da cidade são aceitos então como maneira de concretizar os planos de abertura do negócio. “Ele não veio pra cá movido, como se falava, pelo interesse do projeto público, mas, na verdade, porque viu que havia dinheiro sendo investido na cidade”, explicou a pesquisadora.
A pesquisadora e a pesquisa
Roseli Maria Martins D’elboux é professora de arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sua tese de doutorado foi orientada pela professora Maria Cristina da Silva Leme da FAU-USP.
Além da investigação própria, a pesquisadora contou com colaboração de estudantes da graduação que realizavam intercâmbio na França para conseguir acesso a documentos relacionados a Bouvard. Só pôde visitar a França durante uma semana, na qual se dedicou ao máximo para extrair fontes documentais.
Para chegar à tese de doutorado, antes precisou interromper um primeiro projeto em andamento devido à morte do seu orientador, o professor Murillo Marx, também da FAU, em 2011.
“Foi uma coisa meio longa, mas foi muito proveitosa. Eu faria de novo porque no fim eu consegui achar uma documentação bacana e consistente, que valeu a pena”, disse Roseli.