Por Crisley Santana
Os anos 1920 no Brasil ficaram marcados, entre outros acontecimentos, pelo movimento modernista, que buscava revolucionar os conceitos de cultura no país. Nesse contexto, intelectuais e artistas tornaram-se referência em suas áreas e muitos se aproximaram, criando laços de amizade. É o que demonstra a tese de doutorado Cartas provincianas: correspondências entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira.
O estudo foi realizado por Silvana Moreli Vicente Dias no Programa de Pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Em 2009, o projeto foi vencedor do Prêmio Capes de Teses, promovido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CNPq), vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI).
Foi em Recife, capital de Pernambuco, que Silvana encontrou parte do acervo consultado para a tese. Durante visita à Fundação Gilberto Freyre (1900-1987), tomou conhecimento da “riqueza de cartas”, como ela classificou, que havia na instituição. Decidiu, então, estudá-las após confirmar a possibilidade de consultar e editar o material.
Buscou arquivos, ainda, no Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, localizado em Botafogo, Rio de Janeiro, no qual há acervo dedicado a Manuel Bandeira (1886-1968), correspondente de Freyre.
Além das cartas, foram adicionadas fotografias, postais, crônicas, poemas e ensaios dos autores modernistas. Elas revelam não só as vivências compartilhadas, mas o contexto da época e seus paradoxos. O material demonstra aspectos do paradoxal modernismo basileiro.
As contribuições para o modernismo
Ambos os autores tiveram participação fundamental na consolidação do movimento modernista. O estilo iniciou com a Semana de Arte Moderna na São Paulo de 1922, em evento marcado tanto por apoio quanto por contradições: obteve aprovação ao mesmo passo que críticas.
Um dos principais objetivos era resgatar uma cultura essencialmente brasileira, afastando o crivo europeu de estética pelo qual eram avaliados artigos culturais e artísticos do país. “A maneira de modernizar seria conhecer o Brasil, trazer o país para o debate em questões sobre a formação nacional e quem é o brasileiro”, analisou Dias.
Tanto Bandeira quanto Freyre se mostraram favoráveis ao que o movimento propunha. Passaram a realizar em suas publicações reflexões sobre a população brasileira, relacionadas à sua origem e suas desigualdades. As contribuições buscavam democratizar um conhecimento mais complexo sobre o tema, fundamental em um período no qual havia poucas universidades e grande déficit educacional.
“O tema da formação do Brasil nasce com o objetivo de aprofundar as reflexões, pois há uma herança que não é exclusivamente europeia, mas que dialoga com os povos originários e africanos”, ressaltou a pesquisadora .
Os autores exploraram esses aspectos pela oralidade. Nas poesias e crônicas, Bandeira inovou ao abordar aspectos regionais e sentimentais, como a relação com a família e infância, além da estrutura de versos livres. Freyre debruçou-se sobre a discussão sociológica nacional, e inovou nesse aspecto, já que o maior foco dos intelectuais brasileiros era dado à Europa.
O regionalismo ganhou destaque com os autores. Ambos se denominavam provincianos, apesar do conteúdo moderno que dominavam. Segundo Silvana , eles defendiam as raízes. “Achavam que era possível ser moderno sem deixar para trás as questões que dizem respeito à história e à realidade, tipicamente brasileira”.
Inovador também era o estilo das cartas trocadas entre os modernistas, nas quais predominava o aspecto informal e de crônica. A pesquisadora explicou que, na época, dificilmente se escrevia da mesma maneira em que se falava, e os autores exploram isso.“Não tem aquela formalidade que era até então cultivada no gênero carta do século 19”.
Os paradoxos da província
O estudo mostra que é paradoxal o conceito de província no movimento modernista. O Brasil diferenciou-se de outros países do Ocidente, nos quais o aspecto moderno está ligado, principalmente, a assuntos cosmopolitas, de defesa da urbanização e grandes centros urbanos. No movimento nacional, porém, houve grande defesa do regionalismo e da província, com objetivo de resgatar uma história local.
A contradição está na visão de que a defesa da província não exclui a modernidade. Silvana disse que para os brasileiros defensores da tese, como Freyre e Bandeira, é possível ser provinciano e moderno ao mesmo tempo. “Como ser cosmopolita e esquecer que eu tenho uma herança que é tão desigual no Brasil? Como eu vou deixar de refletir sobre o aspecto histórico? Essa geração [de modernistas] vai tentar complexificar esse debate”, explicou
Os autores também defendem que ser provinciano estava relacionado a questionar os valores das metrópoles, como o sistema burguês da democracia liberal, presente em países como os Estados Unidos, no qual Freyre viveu.
A proximidade entre os autores
O nome de Gilberto Freyre já circulava entre intelectuais importantes do país antes de Manuel Bandeira se tornar um escritor conhecido, destacou a pesquisadora..
Os laços entre os dois começaram a se estreitar quando o sociólogo convidou Bandeira para escrever no jornal A Província, no qual era editor em Recife. Bandeira passa, então, a explorar sua faceta cronista, além da de poeta, pela qual é até hoje marcado.
“Ele escrevia textos a cada quinze dias. Isso vai fazer sua faceta cronista circular e ser divulgada para um público mais amplo”, diz a pesquisadora, destacando a imprensa como ponte de aproximação entre os modernistas.
Após a entrada de Bandeira no periódico, Gilberto Freyre ficou longe do país, em exílio forçado pela Revolução de 30 — ele foi secretário particular do governador deposto na ocasião. Mesmo assim, permaneceram acompanhando um o trabalho do outro. .
Na crônica Sou provinciano, por exemplo, publicada em março de 1933 no jornal O Estado de Minas, Bandeira se refere a Freyre, demonstrando estar a par das empreitadas do amigo. Mais tarde a crônica entrou para o livro Andorinha, andorinha, editado por Carlos Drummond de Andrade.
“Conheço um sujeito de Pernambuco, cujo nome não escrevo porque é tabu e cultiva com grandes pudores esse provincianismo. Formou‐se em sociologia na Universidade de Colúmbia, viajou a Europa, parou em Oxford, vai dar breve um livrão sobre a formação da vida social brasileira… Pois timbra em ser provinciano, pernambucano, do Recife.”, descreve no texto.
De volta ao Brasil, Freyre publicou o livro Casa Grande e Senzala no fim daquele ano, consolidando-se no Brasil e tornando-se reconhecido também por intelectuais estrangeiros, especialmente pesquisadores da América Latina.
A correspondência demonstra grande afinidade entre eles, com cartas escritas em tons cordiais, como a tese destaca.
A pesquisa e a pesquisadora
Silvana Moreli Vicente Dias é professora de Letras na Universidade Veiga de Almeida. Sua tese de doutorado foi orientada por Viviana Bosi, do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Ela desenvolveu a tese com bolsa do CNPq
“São trabalhos que demandam, efetivamente, um aparato da academia, um aparato científico de pesquisa para conseguir desenvolvê-los”, disse se referindo ao desenvolvimento de produções acadêmicas.
Sua tese foi transformada em livro. Cartas provincianas: Correspondência entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira foi publicado pela editora Global em 2017. Todo o material analisado — cartas, cartões-postais, crônicas, ensaios, poesias e fotografias — está reunido no exemplar.