Centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 e saúde no Brasil

Artigo escrito por Samuel Jorge Moysés, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), e Marco Akerman, professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP

Artigo publicado originalmente no Jornal da USP

Samuel Jorge Moysés e Marco Akerman – Fotos: UFPR TV e Arquivo pessoal

Uma semana de arte, que se autodenomina “moderna”, constitui-se moderna por quais fundamentos, características ou propósitos?

O núcleo de significação que será problematizado aqui é o uso do adjetivo “moderno”, quando, ao usá-lo, os modernistas presumivelmente queriam manifestar uma ruptura com o passado “não moderno”. Já sabemos de antemão, pelo étimo proveniente do latim modernus, que tal palavra deveria significar “algo que é recente, novo ou do tempo presente”. Até aí, aparentemente, tudo está em conformidade e não precisamos necessariamente problematizar o seu aspecto lexical.

Ademais, desde 1922, muita coisa foi chamada de moderna no Brasil, na acepção dicionarizada. Seja o “neo” ou o “novo”, tais elementos de composição têm sido genericamente empregados de forma conexa ao vigor da juventude, ao frescor dos novos tempos: o cinema novo, a bossa nova, a jovem guarda, o neoconcretismo, a nova arquitetura, todas as novas vanguardas artísticas nacionais. Até mesmo o neoliberalismo rebatizou o velho liberalismo, com exaltações modernizadoras. Pode-se argumentar que somente a política continuou velha, muito embora tenhamos tentado com a Nova República.

O conceito de modernidade

Para ficar inicialmente em apenas um autor, Bruno Latour, ele publicou em 1991 o livro Jamais fomos modernos (título original, em francês: Nous n’avons jamais été modernes: Essai d’anthropologie symétrique), traduzido em mais de 20 línguas. Como o próprio autor o define, trata-se de um breve ensaio que já nas primeiras páginas fala de crise.

Nesta obra, Latour vai situando o leitor já nos primeiros parágrafos, ao se referir ao exercício trivial de leitura de um artigo de jornal diário. De modo entretido e ao mesmo tempo denso, ele discorre que o mesmo artigo mistura reações químicas na camada de ozônio e reações políticas no nosso cotidiano opaco. O mesmo fio narrativo do jornal conecta a mais esotérica ciência e a mais baixa política, o céu mais longínquo e uma certa usina no subúrbio de Lyon, o perigo mais global e as próximas eleições ou o próximo conselho administrativo da cidade. As proporções, as questões, as durações, os atores não são comparáveis ou equivalentes e, no entanto, estão todos envolvidos na mesma história.

Ao falar de crise, Latour introduz a questão dos “híbridos”. Ou seja, todos os temas mais complexos e desafiadores da cultura e da natureza, os quais são emaranhados em debates dos quais participam os mais assimétricos atores e seus contraditórios interesses – muitas vezes, irreconciliáveis. Assim, também nos jornais, multiplicam-se os artigos híbridos que delineiam tramas de ciência, política, economia, direito, religião, técnica, ficção, opinião, crença.

Rios poluídos, embriões congelados, robôs, organismos geneticamente modificados – como compreender esses “objetos” estranhos que invadem cada vez mais o nosso mundo? Eles concernem à esfera da natureza ou da cultura? Até algum tempo atrás, as coisas pareciam simples: a gestão da natureza cabia aos cientistas e a gestão da sociedade, aos políticos. Hoje, cada vez mais os híbridos nos desafiam.

Essa partilha tradicional entre ciência e política subsiste ainda em 2022, embora já tenha se mostrado impotente para dar conta da “proliferação dos híbridos”. Desenvolveram-se abordagens para explicar o mundo (pensa-se aqui nos diversos tipos de abordagem como antropologia, sociologia ou física, por exemplo), mas elas são abordagens disciplinares muito escrupulosas (e falhas) por serem, segundo Latour, incompatíveis umas com as outras, em suas divisões de expertises, e por não contemplarem a característica híbrida das entidades e fenômenos. Esses quase-objetos, quase-sujeitos, quase-natureza, quase-cultura não confirmam uma antropologia simétrica – conforme o próprio subtítulo de Latour.

Dito de outro modo, não deveríamos mais partir do pressuposto de que as polaridades entre cultura e natureza, humanos e não humanos, civilizados e primitivos, colonizadores e colonizados, são lados diferentes no “Grande Divisor da Modernidade”, reservando apenas ao primeiro polo o campo privilegiado da reflexão antropológica, ao modo como tal polo tem produzido a compreensão moderna do mundo, uma realidade fabricada em artefatos naturais, sociais e discursivos.

O que significa ser ou não ser moderno? Latour esclarece que nossas cuidadosas distinções entre natureza e sociedade, entre humanos e “coisas” – ao ficarmos inebriados em nosso torpor antropocêntrico, eurocêntrico e epistemocêntrico –, supomos sermos modernos com distinções que nossos ancestrais “ignorantes” (ou os “outros”), em suas cosmovisões de alquimia, astrologia e frenologia nunca fizeram. Mas, ao lado dessa prática de dominação purificadora que define a modernidade, existe outra aparentemente contrária: a construção irrefreável de sistemas que mesclam política, ciência, tecnologia, cultura, natureza, religião e senso comum. Atualmente, de modo avassalador, também muitas fake news.

Com o surgimento da ciência iluminista, pós-cartesiana, acreditamos nós (os modernos) que o mundo mudou irrevogavelmente, separando-nos para sempre de nossos ancestrais pré-modernos. Mas se abandonássemos essa “convicção afetuosa”, pergunta Bruno Latour, como seria o mundo? Seu livro, uma antropologia da ciência, nos mostra que boa parte da modernidade é, na verdade, uma questão de fé.

A modernidade entrou em crise devido à proliferação dos híbridos, que são essas estruturas mistas, naturais e artificiais como “embriões congelados, sistemas especialistas, máquinas digitais, robôs munidos de sensores, milho híbrido, bancos de dados, psicotrópicos liberados de forma controlada, baleias equipadas com radiossondas, sintetizadores de genes, analisadores de audiência”. Multiplicam-se as matérias híbridas que delineiam tramas em que toda a cultura e toda a natureza são diariamente reviradas, reposicionadas, permutadas.

À medida que esses híbridos proliferam, a perspectiva de manter a natureza e a cultura em suas câmaras mentais separadas torna-se opressora – e, em vez de tentar separar, devemos repensar nossas distinções, repensar a definição e a constituição da própria modernidade. Entram em cena outros mundos onde a diversidade e a pluralidade também estão presentes “sem serem caçadas, sem serem humilhadas, sem serem caladas […] no qual ninguém precisa ficar invisível […] e que sejamos capazes também de reciprocidade, que é um lema que deveria estar presente entre aqueles que propõem que nos juntemos para pensar mundos”.

Evidentemente que a crise conceitual da “modernidade” favoreceu o aparecimento da “pós-modernidade”, outro conceito polêmico. Parece evasivo, e até um pouco cômico, como os pensadores a partir do final do século 20, cada vez mais, designam eras com o prefixo “pós”: pós-cristão, pós-Holocausto, pós-industrial, pós-estruturalista, pós-humanista, pós-moderno, e assim por diante. Esses rótulos definem um período pelo seu aparecimento linear no tempo, e não pelo que ele é intrinsecamente, de modo que na verdade não o descrevem.

De acordo com Latour, isso acontece porque a característica fundamental do modernismo tem sido uma concepção estritamente linear do tempo, que se divide de acordo com os acontecimentos e ideias “modernizadoras”, pelas quais tudo se transformaria inexoravelmente. As rupturas com o passado são, no entanto, uma ilusão, uma vez que “nunca fomos definitivamente modernos”, e as mudanças históricas não são nem progressivas nem irreversíveis. O que entendemos como modernidade (a visão iluminada e racional-científica do mundo) não é uma ruptura radical com o anterior e certamente não deve ser interpretada em termos de progresso; ao contrário, pode até ser uma visão enviesada ou errada.

Como consequência, o autoproclamado modernismo nos dá a ilusão de que tudo o que ele cria é novo e diferente e, acima de tudo, melhor (um acúmulo de conhecimento e percepções). E assim nos lança em uma arrogância que deslumbra e disfarça o fato de que estamos caminhando para a disrupção nada “moderna” como, por exemplo, a catástrofe socioambiental – daí o forte apelo ecológico em obras posteriores de Latour, sob as complexidades do Antropoceno (as marcas da ação humana no planeta).

Se nos fixarmos exclusivamente no aspecto cronológico do tempo (e não em sua historicidade), é difícil encontrar uma atividade ou constituição homogênea do ponto de vista do que se chamaria “tempos modernos”. Alguns de nossos hábitos tão visceralmente praticados variam de poucos anos (o telefone celular) a vários milhares de anos (preces religiosas). Sempre separamos ativamente os elementos pertencentes a épocas diferentes. Ainda podemos classificar. É a classificação que faz os tempos, não os tempos que fazem a classificação.

O modernismo parece ter sido apenas o resultado provisório de uma seleção feita por um pequeno número de agentes. Não estamos saindo de um passado obscuro que confundiu naturezas e culturas para chegar a um futuro em que os dois polos finalmente se separarão de forma limpa, devido à revolução contínua do presente científico e tecnológico. Ao contrário, a hibridização se acentua.

A Semana de 1922 foi moderna?

Então o modernus, que deveria significar “algo que é recente, novo ou do tempo presente” de fato demarcou a tal Semana futurista? Quais híbridos já se manifestavam naquele corte histórico da sociedade brasileira e na arte em particular? É tema complexo para ser enfrentado em um breve ensaio, mas a interpretação do mundo não cessa e propomos uma reflexão sobre alguns desdobramentos.

Teria sido a modernidade da nossa famosa Semana definida erroneamente? Esta poderia ter sido apenas uma denominação circular, uma jogada semântica ou retórica?

Voltando a Latour, o que ele diria sobre a efeméride de 1922? Que já temos um passado, mas o futuro assume a forma de um círculo que se expande em todas as direções, e o passado não é superado, mas revisitado, repetido, cercado, protegido, recombinado, reinterpretado e remodelado. O Brasil que finalizou o século XIX com Antonio Conselheiro e Canudos e avançou nas primeiras décadas do século XX com Lampião e Maria Bonita é arcaico (pré-moderno) ou moderno? As mentalidades coloniais e escravagistas, a hegemonia masculina branca patriarcal, a arte que valoriza influências eurocêntricas (ou norte-americanas) e condena o samba e a capoeira como “vagabundagem”, vão se plasmar de que modo – como híbridos? – em Macunaíma e na construção antropofágica?

Algo digno de nota sobre a Semana de 1922, é que na capital que seria o espelho cultural do Brasil, o Rio de Janeiro dos anos 1920, havia uma constelação de pensadores que traduziam a ebulição e a “modernidade” vivida na época. Mas o protagonismo para tal modernidade foi todo dirigido, na crítica ácida de Ruy Castro, por exemplo (Metrópole à beira-mar: O Rio moderno dos anos 20), à “membros de uma ação entre amigos […]” que tiveram seus nomes ecoados especialmente a partir dos anos 1950.

O que separa Manuel Bandeira (tido como pré-modernista) e Mário de Andrade (modernista)? A poesia, para ser modernista, precisa ser tratada como poema-piada oswaldiano? A música de Villa-Lobos, Pixinguinha ou Ernesto Nazareth poderia ser considerada “não moderna” – a julgar, inclusive, pela resistência no tempo (ou, melhor dizendo, sua atemporalidade)? Claro, o sertão de Euclides da Cunha não é o mesmo sertão de Guimarães Rosa, embora aqui e ali haja uma confluência de referentes, menos estilísticos e mais político-sociais – jagunços, coronéis, opressores, oprimidos, a fusão homem-natureza.

Elementos que parecem remotos, se seguirmos unicamente a espiral do tempo, podem revelar-se bastante próximos se compararmos os loops, os eternos retornos. Por outro lado, alguns elementos ou dispositivos que parecem bastante contemporâneos, se julgados pela linha do tempo, tornam-se bastante remotos ou obsoletos se considerarmos sua função social ou impacto ambiental. Tal temporalidade não nos obriga usar os rótulos “arcaico” ou “moderno”, uma vez que toda coorte de elementos contemporâneos pode reunir elementos de todos os tempos. Em tal quadro, nossas ações seriam reconhecidas finalmente como politemporais.

A revista Klaxon (que significa “buzina”), de 1922, refere-se ao culto do automóvel e da velocidade. Os modernistas paulistas ainda se empolgavam com isso em 1922? E não eram capazes de tornar explícita a homossexualidade de Mário de Andrade, por exemplo? Quais as rupturas substanciais expressas nos manifestos nacionalistas: do Pau-Brasil, da Antropofagia, do Verde-Amarelismo e o da Escola da Anta?

Publicado no primeiro número da revista Antropofagia, de 1928, o famoso Manifesto Antropofágico diz: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”. E termina: “Em Piratininga, Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha”. Se o Manifesto Pau-Brasil propunha uma arte de exportação, produto da urbe moderna, futurista e tecnológica sob a influência vanguardista europeia pós-Primeira Grande Guerra, o Manifesto Antropofágico visualiza a leitura crítica do material importado, que deveria ser devorado e regurgitado. Um moto-contínuo na elaboração de híbridos!

Contudo, a Revolução de 1930 parece ter sido uma grande pedra no caminho desse tipo de modernização, que deixou rastros, mas não se impôs em seus pressupostos nem há cem anos, nem agora. Obviamente, há quem goste de novamente aplicar classificações temporais, subdividindo o Modernismo brasileiro em três fases: 1ª (1922-1930), 2ª (1930-1945), 3ª (1945-1960).

Discutivelmente, há uma reação crítica sempre presente sobre a suposta modernização da arte – e, quase por osmose, a modernização que deveria ocorrer no Brasil. Tal reação muitas vezes se alimenta de disputas regionais, mas é notório reconhecer com os dados do próprio censo de 1920 que o Rio de Janeiro e outros núcleos nacionais de cultura podem ter sido preteridos na “efeméride modernizadora”. O referido censo foi o primeiro do século XX, tendo em vista que o censo de 1910 não ocorreu devido a questões de ordem política. Nada de novo, similar ao que ocorreu com o censo agora em 2020!

O censo mostrou que a população brasileira à época era de 30.635.605 habitantes. A expectativa de vida era de 34,5 anos. A cidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, era a única com mais de um milhão de habitantes. A maioria dos que moravam no país era analfabeta: somente 35,1% da população com idade superior a 15 anos sabia ler e escrever. O Rio de Janeiro concentrava a maior taxa de alfabetizados, que formavam 74,2% de seus habitantes. Como reflexo de uma sociedade patriarcal, os homens eram privilegiados e proporcionalmente mais alfabetizados. Seja como for, o Rio de Janeiro nos anos 1920 era uma cidade culturalmente efervescente, que se beneficiaria das reformas urbanas promovidas por Rodrigues Alves e Pereira Passos, como se verá à frente.

Assim como a Semana condenou os autores pré-22 ao “pré-Modernismo”, a Revolução de 1930 instituiu um “pós-Modernismo” que despachou a Semana de forma fulminante para o passado. Diz-se, em provocativa recepção crítica, que Oswald, Menotti, Guilherme, Candido Motta Filho e outros eram produtos típicos da República Velha. Eram fruto da elite quatrocentona, à qual vários deles pertenciam. Representavam parte do que a Revolução de 1930 veio derrubar. Polemiza-se que o Modernismo de 1922 só tinha sentido na República do café-com-leite e, quando esta acabou, os poemas-piada, paus-brasis e antropofagias foram soterrados. Se há exagero nesse tipo de crítica, é inegável todavia que o Modernismo de 1922, a despeito das obras de grande valor estético, aparentemente pouco influenciou a dinâmica política, social, econômica de uma nação, desde sempre, muito desigual.

A saúde no Brasil por volta de 1922 e suas reverberações futuras

Outro tema complexo. A saúde é um dos setores sociais que bem representam a dinâmica social, ambiental, cultural de uma nação. O Brasil entrou no século XX com as pretensões “modernizadoras” de Oswaldo (outro Oswaldo, o Cruz) e, simultaneamente, sofreu a reação arcaizante da Revolta da Vacina face à campanha de vacinação contra a varíola de 1904. Igualmente, fez avançar a Reforma Carlos Chagas de 1921, mas teriam tais iniciativas constituído outra nação em termos sanitários, superando os atrasos do passado? E quanto ao futuro?

Transcorridos pouco mais de 100 anos, continuamos sob os desafios ainda impostos por doenças transmissíveis e crônicas não transmissíveis, por “pestes” e pandemias – e as novas revoltas das vacinas. Ciência e tecnologia mesclando-se com negacionismo e charlatanismo – ou seja, parece que estamos sempre lidando com híbridos.

A saúde da década de 1920 passa a ser enfatizada pelos sanitaristas como uma questão social e política, parte do processo civilizatório e modernizador. Porém, é preciso lembrar com ênfase que apenas três anos antes da Semana de 1922 falecia nosso ex e futuro presidente, Francisco de Paula Rodrigues Alves (1848 – 1919), de gripe espanhola. É paradoxalmente constrangedor verificar que foi exatamente Rodrigues Alves, juntamente com o prefeito Francisco Pereira Passos, que entre 1902 e 1906 designou o sanitarista Oswaldo Cruz para a chefia do Departamento Nacional de Saúde Pública da época. A medida foi tomada justamente para melhorar as condições sanitárias do Rio de Janeiro.

A gestão de Pereira Passos criou e/ou alargou novas avenidas (inspiração parisiense), reconstruiu o cais do porto, edificou o Teatro Municipal, a Escola de Belas Artes, a Biblioteca Nacional. Ou seja, criou a estrutura e o contexto cultural urbano para o que poderia ser um vislumbre de um tipo de modernização, algo que não foi aparentemente reconhecido pelos paulistas, na Semana de 1922, e que ajudou a alimentar a controvérsia histórica entre cariocas e paulistas.

Antes, como presidente da província de São Paulo, em 1901, Rodrigues Alves já tinha apostado na ciência, criando o Instituto Butantã, pioneiro na pesquisa de soros terapêuticos e na criação de vacinas. Como presidente do Brasil, a partir de 1902 deflagrou a reforma sanitária da capital na época, combatendo primordialmente a febre amarela, a peste bubônica e a varíola. O discurso e a propaganda de convencimento da população, mais uma vez, eram de “modernização” do Rio de Janeiro, mas, por trás da reforma urbana, permanecia a profunda situação de exclusão social.

O presidente falecido (culto e popularmente aclamado na ocasião da morte), era amigo de um parnasiano pré-modernista, Olavo Bilac. No Manifesto da Poesia Pau-Brasil, Oswald de Andrade faz o seguinte comentário sobre os poetas parnasianos: “Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta parnasiano”.

A substituição de Rodrigues Alves em novas eleições foi tumultuada e venceu Epitácio Pessoa, dando sequência à política do “café-com-leite”. O novo governo foi o fermento político para agitações sociais, principalmente na área trabalhista, por rebeliões militares (Tenentismo) e divisões políticas entre as oligarquias dominantes. Obviamente, a conjuntura que marcou o governo de Epitácio Pessoa repercutiu também nas manifestações artísticas do período, culminando com a Semana de 1922, em São Paulo.

Coincidentemente, um ano após a Semana, institui-se em 24 de janeiro de 1923 a Lei Eloy Chaves, relacionando a assistência à saúde aos vínculos formais de trabalhadores urbanos – Caixas de Aposentadorias e Pensões. Esta lei estabeleceu direitos formais disciplinadores da força de trabalho, frente às fortes mobilizações de trabalhadores urbanos. Sob uma suposta modernização administrativa na área de saúde e previdência, aumenta a concentração de poder estatal sobre os meios de produção e a cooptação sobre tais trabalhadores.

Esta é também a década de atuação da Fundação Rockefeller no desenvolvimento dos serviços médico-sanitários e científicos no Brasil, que marcam a consolidação de uma etapa importante do capitalismo industrial. A criação e expansão de carreiras científicas, nas zonas de influência estadunidense na América Latina, voltadas para o ensino e pesquisa na área biomédica, traz nítidas repercussões da Reforma Flexner implementada no ensino médico nos EUA (1910), sob patrocínio das Fundações Carnegie e Rockefeller. Particularmente em São Paulo, berço do tal Modernismo de 1922, esta foi uma década em que a proposta de um novo modelo de atendimento à saúde da população, orientada para o Centro (ou Posto) de Saúde seria o eixo das atividades de saúde pública no Estado, focadas em campanhas de saneamento e educação sanitária – algumas de cunho eugenista.

Se, de fato, as correlações entre cultura, saúde e política estatal são vertentes do modernismo professado à época, é certo que o liberalismo vanguardista proposto por intelectuais/artistas ligados à Semana de 1922 foi, em falta de maior compreensão, identificado por setores conservadores como manifestação ligada ao comunismo e à laicidade. Tanto lá como agora, transcorridos cem anos, estamos estacados, entre horrorizados e perplexos com tanto atraso histórico, em narrativas e disputas enfadonhas que se espelham mutuamente.

Com Getúlio Vargas e os desdobramentos pós-revolução de 1930, tais direitos formais disciplinadores da força de trabalho são estendidos. A rigor, criam-se modelos de organização social da saúde bastante dicotômicos: a saúde pública de caráter estatal e a medicina previdenciária com fortes vínculos privados. Há uma fragmentação de estratégias de atenção à saúde e também dos direitos sociais.

Embora tenhamos passado por importantes transições – demográfica, epidemiológica, nutricional, tecnológica –, continuamos submetidos a ciclos repetidos de imposição de regimes autoritários, de golpes e produção de iniquidades sociais refletidas na saúde. Testemunhamos o desenvolvimento sem precedentes do complexo médico-laboratorial-industrial com fortes tendências oligopolistas internacionalizantes, com baixo investimento na saúde pública nacional. O desfecho organizativo dos institutos de aposentadorias e pensões (e assistência médica) representado pelo Inamps foi o coroamento da compreensão de nação e modernidade que plasmava o regime militar.

A concepção ampliada da saúde que sobreveio com o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira, a 8ª Conferência Nacional de Saúde de 1986 e a fundação do Sistema Único de Saúde, com a Constituição de 1988, busca dar conta de nossas contradições históricas seculares.

Saúde como direito inalienável da cidadania e compreensão generosa de todos os sistemas terrestres (a atmosfera, a litosfera, a hidrosfera e a biosfera), inclusive os híbridos forjados por cultura e natureza, seria de fato uma expressão moderna – na acepção crítica problematizada até aqui formulada. Saúde como responsabilidade do Estado brasileiro, algo a ser ofertado e acessado de modo plural e sem discriminação de qualquer ordem. Uma perspectiva democratizante, de base popular, com descentralização administrativa e cuidados longitudinais a todas as pessoas, seus ambientes de vida e trabalho, com um olhar compassivo para as futuras gerações e para o planeta.

Evidentemente, até aqui tais pressupostos nos facultam assumir a prerrogativa Latouriana, afirmando que jamais fomos modernos. E, no entanto, na área da saúde nosso horizonte de possibilidades como povo-nação mais saudável, com um sistema de saúde de base universal, que honre a cidadania, continua uma promessa em aberto.

A pandemia ainda vigente em pleno centenário da Semana de 1922 demonstra o quanto o Sistema Único de Saúde brasileiro pode ser vigoroso, inovador, múltiplo, inclusivo – em uma palavra, moderno – sem armadilhas de “gerencialismo modernizante” de base privatista e excludente. Para isso é preciso respeito, financiamento, investimento na força de trabalho, prioridade como política pública essencial. Então, quem sabe, seremos modernos!