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Em 1935, Mário de Andrade levou a revolução cultural modernista que havia capitaneado nos anos de 1920 para o serviço público. Convidado pelo então prefeito de São Paulo Fábio da Silva Prado, ele assumiu a direção do recém-criado Departamento de Cultura e Recreação (DCR), ladeado por colaboradores do naipe de Sérgio Milliet, Oneyda Alvarenga, Paulo Duarte e Luiz Saia. A experiência foi curta, encerrada precocemente em 1938 como desdobramento do golpe do Estado Novo, em novembro de 1937. A importância de sua passagem pelo órgão, entretanto, ainda causa admiração e motiva a atenção dos estudiosos da cultura e da administração pública.
Um dos mais recentes olhares sobre o período de Mário no DCR se encontra no livro Administrar Via Cultura: Revolução Educativo-Cultural na Ex-Pauliceia Desvairada (1935-1938), do professor Luiz Roberto Alves, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, lançado recentemente pela Editora Alameda. A partir da análise da documentação administrativa do departamento e da Prefeitura de São Paulo, Alves mostra em seu livro como Mário buscou implementar um projeto de cultura entrelaçado à educação e voltado, sobretudo, para as crianças, os adolescentes e os jovens das famílias operárias.
Ex-secretário de Educação e Cultura de São Bernardo do Campo e de Mauá, o professor elaborou seu estudo a partir da leitura dos atos de administração da gestão de Mário, pesquisando por sete anos arquivos do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e da Revista do Arquivo Municipal (RAM).
“Esse líder modernista, dirigindo uma equipe, quis transformar o ambiente cultural de São Paulo por uma nova leitura cultural-educativa”, comenta Alves. “O que significou dispor todos os equipamentos regulares ou especiais que a administração estava adquirindo e organizando a serviço, em primeiro lugar, da infância, adolescência e juventude, dos filhos de trabalhadores migrantes ou imigrantes que compunham o mundo popular de São Paulo.”
A chegada de Mário de Andrade ao DCR integra um quadro de transformações políticas pelas quais São Paulo passava no início dos anos 1930, após a chegada de Getúlio Vargas ao poder e a derrota na Revolução Constitucionalista de 1932. Tendo perdido pelas armas, a estratégia da elite paulista para retomar a hegemonia no País passava então a se concentrar na cultura – a própria criação da Universidade de São Paulo, em 1934, pode ser considerada fruto dessa estratégia.
É nesse contexto que a institucionalização da cultura, assunto debatido nas rodas intelectuais modernistas das quais Mário fazia parte, é levada para Fábio da Silva Prado. Nomeado prefeito pelo governador Armando de Salles Oliveira, Prado acata a sugestão de Paulo Duarte e cria o Departamento de Cultura e Recreação em 31 de maio de 1935.
Mário assume a direção do DCR tendo nas mãos um órgão sem paralelos na administração brasileira, que contava com 10% do orçamento da Prefeitura e respondia diretamente ao gabinete de Prado. Com pouco mais de 40 anos e já tendo escrito sua obra-prima Macunaíma, o modernista se entrega com energia à nova tarefa, chegando a escrever que havia se esquecido completamente de si e se tornado o próprio departamento.
“As divisões e os departamentos construídos naquele momento foram tão seguramente embasados por uma teoria e por uma prática de cultura e educação que sobrevivem, em São Paulo e em outros lugares do Brasil, formas ‘marioandradianas’ de organizar secretarias de cultura”, reflete o professor.
Para Alves, a passagem de Mário e seus colaboradores pelo departamento – um grupo chamado pelos adversários de “futuristas ilustrados”, segundo o professor – acontece quando todo o aprendizado iniciado nos anos 1920 os encontra amadurecidos e com uma bagagem que pensa a educação intimamente relacionada à cultura. “Mário ligou educação e cultura como nós não conseguimos fazer até hoje”, destaca.
O grupo liderado por Mário, prossegue Alves, aprende a pensar a política e é então convidado a realizar um serviço público em uma cidade de crescimento acelerado, com intenso fluxo de migrantes lotados em bairros afastados do centro. “O universo do operário paulistano era o mais propício para a construção daquele serviço público movido pela cultura, com interesse de desenvolver um trabalho educacional na cidade”, indica o professor.
Essa proposta transparece em uma série de políticas implementadas pelo DCR sob comando de Mário, como a ampliação dos parques infantis. Voltados para os filhos da classe operária, os parques viram seu número aumentar e receberam uma série de atividades pensadas para o contraturno escolar, como educação física e oficinas de trabalhos manuais, além da implementação de unidades de saúde e serviços dentários.
Mário também traçou um modelo de bibliotecas populares, distribuídas pelos bairros da cidade, que reuniam acervos de livros e espaços para palestras e salões de jogos, em uma perspectiva que entendia o lazer e a recreação como partes da cultura. Foi dele também a concepção das bibliotecas circulantes, surgidas em um veículo adaptado que percorria os parques da cidade.
Durante a gestão do modernista, foram criados ainda o Coral Paulistano e o Quinteto de Cordas, buscando ampliar o escopo de locais tradicionalmente dominados pelas elites, como o Theatro Municipal. Além disso, Mário entendia o DCR como um espaço intimamente ligado à ciência, e destinou recursos, pessoal e energia para pesquisas como a missão folclórica e para a constituição de acervos como a discoteca pública municipal. “Ele tinha uma vontade enorme de que o departamento tivesse, o tempo todo, uma fundamentação científica”, aponta Alves.
Essas políticas postas em ação por Mário e pelo departamento vinham ao encontro de um projeto mais ambicioso da elite paulista, conforme explica o professor. A administração de Fábio da Silva Prado era vista como uma espécie de balão de ensaio para um projeto federal, que deveria ser concretizado com a eleição de Armando de Salles Oliveira para presidente em 1938. Um projeto frustrado pelo golpe de Getúlio Vargas, que instaurou o Estado Novo. O próprio Mário seria afastado da direção do DCR e as iniciativas do órgão, descontinuadas. Frustrado, caberia ao modernista um autoexílio no Rio de Janeiro.
“Havia o projeto de criar em São Paulo aquilo que iria rebater nas estruturas organizacionais de todo o Estado e do Brasil, a partir de 1937. Simplesmente, nada disso acontece”, conta Alves. De acordo com esse projeto, “o País se organizaria com fundamento nas culturas do povo brasileiro e em um processo educacional que desse altíssimo privilégios às crianças, aos adolescentes e aos jovens das famílias mais pobres. Algo que o Brasil tangenciou, mas não testou tão bem ainda: esse modo de ler a administração pública, resultado da força, da competência e da ousadia modernista”, conclui.
Administrar Via Cultura: Revolução Educativo-Cultural na Ex-Pauliceia Desvairada (1935-1938), de Luiz Roberto Alves, Editora Alameda, 296 páginas, R$ 68,00.
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Texto: Luiz Prado, Jornal da USP