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Por Juliana Alves / Jornal da USP
Após as aulas de piano, os alunos da Escola de Música, na São Paulo dos anos 20, ficavam folheando revistas de música, entre elas a Ariel, fundada pelo pianista Sá Pereira, em parceria com o ilustrador Antonio Paim e com o escritor Mário de Andrade. A cena é descrita pela professora Flávia Camargo Toni, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, que nesta quinta-feira, dia 9, às 14h30, será a mediadora do seminário Ariel, Uma Revista de Arte, com transmissão ao vivo pelo canal do IEB no Youtube.
“Ariel é a primeira revista do Modernismo dedicada exclusivamente à música. O estudo de sua literatura revela importantes aspectos da primeira fase desse movimento, bem como da história do periodismo musical no Brasil e de seus colaboradores”, conta Isadora Bertolini, formada em Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e em Música pela Escola de Música do Estado de São Paulo (Emesp), uma das palestrantes do seminário. Lançada pela editora musical Campassi&Camin em outubro de 1923, inicialmente a revista foi dirigida por Sá Pereira, com intuito didático de aprofundamento crítico em relação à música, tanto na parte de composição quanto de interpretação e apreciação.
A professora Fátima Corvisier, do Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, também participante do seminário, conta detalhes da criação da revista. Ela diz que Sá Pereira fez sua formação musical na Europa e entrou em contato com o que havia de mais atual no campo da música. Ao retornar ao Brasil, foi convidado a assumir a direção do Conservatório de Música de Pelotas (RS), onde também lecionava piano, e teve a ideia de criar uma revista de arte e cultura musical, que a princípio se chamaria Magma, uma revista de cultura e arte, tendo por base publicações sobre música comuns na Europa. Para tanto, convidou Mário de Andrade para participar da revista.
Num artigo de sua autoria, A Primeira Fase de Ariel, Uma Revista de Música, Flávia Toni mostra que em outubro de 1923 o público entrou em contato com o primeiro número da revista, ainda com o nome Magma. O novo título que foi dado à publicação se refere a um personagem da peça A Tempestade (1611), de Shakespeare. Ariel, um espírito dócil, encarcerado no interior de uma árvore pela feiticeira Sicorax, divide as cenas com o filho dela, Caliban, e Próspero, um duque de Milão exilado que cria sua filha, Miranda, numa ilha hostil jogada no meio do nada. Ariel é libertado por Próspero e se torna um eterno devedor. Flexível, podendo se transformar em vários elementos e na própria música, ele auxilia o nobre italiano nas façanhas em que Caliban e uma série de personagens secundários são enredados. “Como o gênio aéreo do drama de Shakespeare que lhe empresta o nome, colima a nossa revista uma nobre missão: por meio da música, tal como o Ariel do drama, servir uma boa causa, auxiliar a difundir a cultura”, destaca o editorial da primeira edição da revista.
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Fases da Revista
A primeira fase de Ariel vai de 1923 a 1924 e soma 13 edições. Isadora Bertolini aponta que nessa época a revista trazia principalmente artigos sobre musicologia e novas tendências estéticas, críticas à política cultural, notícias, discussões filosóficas acerca da educação musical, análises de concertos e outros assuntos que eram discutidos no círculo de debates que o movimento modernista fomentava. “Ariel propunha-se a dinamizar a produção musical de seu contexto. Seus artigos instigavam os leitores a conhecer novas referências no mundo da música e das artes, na esperança de envolver mais pessoas com o que acontecia de atual no Brasil e no mundo”, relata Isadora.
A publicação tinha uma seção chamada Revista das Revistas, em que eram indicados artigos de revistas modernistas do mundo todo, como as parisienses La Revue Musicale e Le Monde Musical, a argentina La Quena e as brasileiras Brasil Musical e Terra de Sol, do Rio de Janeiro. Publicou artigos de perfis de diversos compositores, como Marcelo Tupinambá (1889-1953), Alberto Nepomuceno (1864-1920) e Ferrucio Busoni (1866-1924). Havia também a programação de concertos da semana. Outra seção era didática, pois continha artigos escritos para os alunos de música. Outras páginas traziam traduções de artigos de autores internacionais da área musical. A revista também ajudou a irradiar notícias sobre os brasileiros que estudavam na França, através da coluna de Sérgio Milliet, Cartas de Paris.
A professora Fátima Corvisier chama a atenção para as seções didáticas da revista. Em quatro edições, publicadas entre janeiro e maio de 1924, Sá Pereira demonstrou o que seria a técnica moderna de piano e como deveria ser o estudo sob a ótica racional, isto é, um estudo de maior eficiência, menor esforço, menos tempo consumido e com objetivos claros.
Entre os colaboradores da revista, que assinavam artigos e poemas, há 39 nomes, alguns conhecidos, como o músico Jaques-Dalcroze, outros que não eram conhecidos do público em 1923, como Renato de Almeida. Há também textos de autores com nomes inverossímeis, como um certo Florestan – que publicou cinco textos –, indicando aos leitores atentos a existência de pseudônimos, e muitas matérias sem autoria, apontando principalmente para Sá Pereira, nos primeiros números.
“É uma revista que ousa na forma de se apresentar”, afirma Flávia sobre a estética da revista. “Ela traz uma comunicação mais arrojada, é muito ilustrada, criativa, e não segue um padrão habitual, só com fotografia e texto.” A professora explica que a revista traz traços não convencionais e possui uma maneira mais inovadora de distribuir os assuntos na página, com manuscritos, desenhos e fotografias. Como ilustrador de Ariel, as obras assinadas por Antonio Paim aparecem em várias seções com as técnicas empregadas pelo artista plástico.
Além da estética arrojada, outras características do Modernismo que se refletem na revista eram a defesa de uma renovação na estética musical vigente, a busca por uma identidade nacional na música e a preocupação didática necessária para a ampliação do público apreciador das novas linguagens. “A própria escolha da revista mensal como periódico propagador de ideias é tipicamente modernista – não tão ‘estático’ quanto um livro e não tão fugaz quanto um jornal”, explica Isadora Bertolini.
Outro traço modernista é a adoção de apelidos e pseudônimos para assinar textos. Não era incomum que o leitor lesse não “Mário Raul de Andrade” no final de algum artigo, mas “Raul de Moraes”, por exemplo. Além do mais, “ela é uma revista do Modernismo relevante tanto no campo dos estudos literários como para os estudos sobre música”.
Extensão da militância
Flávia aponta que ao pesquisar sobre estudos literários do Modernismo, observa-se a relevância da epistolografia. As cartas trocadas entre os modernistas mostram como eles se reuniam em torno de jornais e de revistas e faziam desses veículos uma extensão da militância daquilo que acreditavam. E Ariel era uma dessas revistas.
Em sua primeira fase, Ariel foi dirigida por Sá Pereira entre os números 1 e 8 e por Mário de Andrade entre as edições 9 e 13. Alguns colaboradores notáveis da revista foram Manuel Bandeira, Sérgio Milliet, Renato de Almeida, Yan de Almeida Prado e Émile Jaques-Dalcroze.
Na segunda fase, entre 1925 e 1926, a publicação passa a ser de outra editora e torna-se uma revista de costumes, que aborda temas diversos e passa a ter uma apresentação gráfica convencional. Na terceira fase, a partir de 1926, Ariel passa por variações passando a se chamar Ariel Arte, Leitura, Ilustrações, Elegância e Atualidades.
Isadora explica que a revista segue pelo menos até o número 74, em 1929. Nessa época, percebem-se fortes alterações – o subtítulo deixa de ser Revista de Cultura Musical para Música, Teatro, Arte, Literatura, Atualidades Sociais. A implantação de maior variedade de assuntos, as crônicas de mudanças sociais e comportamentais e a abordagem mais acessível para os assuntos artísticos são outras mudanças. Também a publicidade se diversifica cada vez mais, incluindo agora produtos como bebidas alcoólicas e máquinas datilográficas. Na parte gráfica, as mudanças notadas são a inclusão de fotos e mais ilustrações, dando preferência também a textos menores, o que reflete numa revista mais “rápida e leve”.
No âmbito editorial, as análises perdem espaço. Novas seções, como a Prestissimo e a Sinfonietta, trazem notas curtas e informativas sobre atualidades musicais, programação e acontecimentos de forma breve, sem aprofundamento ou grandes comentários. Os artigos que ainda permanecem, porém, carregam-se ainda mais das bandeiras de Mário de Andrade, em parte porque o escritor passou a ser o maior colaborador da revista.
Apesar das variações verificadas nas três fases da revista, a professora Fátima Corvisier conclui que Ariel foi uma revista que teve por objetivo a difusão da cultura por meio da música e a divulgação das ideias mais atuais nos vários campos da atuação musical, desde a performance até o ensino.
O seminário Ariel, Uma Revista de Arte, promovido pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, será realizado nesta quinta-feira, dia 9, às 14h30, no canal do IEB no Youtube. Grátis. Não é preciso fazer inscrição.